Acontecimento Histórico

Portugal, no séc. XIX

Portugal, no séc. XIX, seria o último dos lugares indicados para uma congregação religiosa francesa iniciar uma fundação.

Como em outros países europeus, particularmente no Porto, um forte sentimento anticlerical dirigido, sobretudo, ao clero religioso que, assim, pagava o facto de ter apoiado o lado vencido da “guerra dos dois irmãos” – D. Pedro e D. Miguel.

Existia, também, um forte ressentimento contra a França por causa das invasões francesas -1807, 1809, 1810 – e consequente ocupação de Portugal, marcada por pilhagens e muita devastação. Após quatro anos de guerra, o país ficou numa situação política difícil: de 1808 a 1821 Portugal foi, ao mesmo tempo, protetorado inglês e colónia do Brasil.

Isto justifica a aversão contra as comunidades francesas, sobretudo na cidade do Porto, onde a influência maçónica era intensa.

Na década de 1850, tempo de calma relativa, as ordens religiosas voltaram a surgir em Portugal, mas disfarçadamente. Os Jesuítas regressam em 1858, os Franciscanos em 1861, os Padres do Espírito Santo em 1867.

As ordens femininas também apareceram, sendo toleradas devido aos serviços que prestavam aos órfãos e aos doentes, especialmente em tempo de epidemia. Contudo, não são autorizadas até 1901 e, por isso, procuram não atrair a atenção.

A cidade do Porto

O Porto era, na época, uma grande cidade comercial, com população crescente de uns cem mil habitantes. A burguesia – classe dominante – apoiava fortemente o regime liberal. Cidade berço do anticlericalismo, as leis contra as ordens religiosas eram severamente aplicadas. Por isso, durante este período, não havia religiosas nos hospitais, nas escolas, nos orfanatos ou escolas.

A burguesia influente aliava-se regime liberal na preocupação de promover a educação no país. Procurava-se aumentar o número de escolas primárias oficiais para diminuir a excessiva falta de instrução e fundaram-se liceus ou escolas secundarias baseadas no modelo francês – lycée.

Por ser uma cidade com muitos estrangeiros envolvidos no comércio e em negócios, sentia-se grande necessidade de escolas onde os jovens pudessem aprender as línguas usadas no ‘mercado’. Daí, ser comum, no Porto, existirem muitas escolas para rapazes e meninas, com nomes como: “Colégio Francês, Colégio alemão ou colégio inglês”.

Margaret Hennessy era diretora de uma dessas escolas.

O que poderá ter levado o P. Gailhac a interessar-se pela fundação em Portugal?

E porquê o Porto?

Em 1870 o Instituto das Religiosas do Sagrado Coração de Maria tinha pouco mais de 20 anos de existência. Não havia, ainda, irmãs portuguesas na comunidade.

Nos primeiros anos, a M. St. Jean, 1ª Superiora Geral e co-fundadora, cuidou da encarnação do carisma, em “rosto feminino”, na diversidade das Irmãs da comunidade e da consolidação das Obras do Bom Pastor, expressão do carisma a favor da vida de todos, com lugar especial para os “vencidos da vida”.

A 2ª superiora geral – M. St Croix Vidal – eleita a 01 de maio de 1869, investiu na expansão do Instituto para fora de França, por terem fracassado as tentativas a nível interno.

O “Colégio Inglês”

A família Hennessy ocupou lugar central nesta fundação.

Margaret Hennessy tinha duas irmãs: Teresa – Madre Saint Thomas – e Bridget – Madre Sainte Marie.

Margaret deixou a Irlanda e instalou-se no Porto antes de Teresa entrar no IRSCM (1851). Em 1856 o seu nome aparece, nos registos oficiais, como diretora do “Colégio Inglês”, na Rua da Torrinha, 132. No ano seguinte, a escola passou para o número 126 da mesma rua, sendo apresentada como “Colégio Inglês, Francês, Alemão e Português”, com um corpo docente internacional. Além das quatro línguas, ensinava-se aritmética, geografia, dança, desenho, música e costura.

Em 1866 a escola aparece registada na Rua da Picaria, 96 e, passados alguns anos, reabre na Travessa da Fábrica, 45.

É para este estabelecimento que as Religiosas do Sagrado Coração de Maria virão, em 1871.

1ª Fundação em Portugal – Porto 1871

Não há certeza da altura em que Margaret Hennessy decidiu fazer a doação da sua escola à comunidade, mas, certamente, falou, várias vezes, desse seu plano com a M. Ste Croix e com as suas irmãs.

Em 16 agosto 1871 expôs a sua intenção ao bispo do Porto – D. Américo Ferreira Santos Silva – alegando que precisava de ajuda de algumas senhoras francesas e inglesas para o ensino da religião e de outras disciplinas e que conseguira interessar algumas senhoras de um Instituto em Béziers, França (Cfr Carta de Margaret Hennessy ao Bispo do Porto). O consentimento do bispo foi dado sem demora, a18 agosto 1871.

Margaret comunicou à M. Ste Croix que uma simples anotação – “Accordé” – ao alto da página do requerimento fora o único meio do bispo exprimir legalmente a sua autorização e acrescentou: “… agora, suponho, que nada haverá que a impeça de me enviar algumas das suas boas religiosas”. Informa que as irmãs devem vir preparadas para uma grande pobreza, pois, à escola faltam os instrumentos de ensino necessários. Para além das privações materiais, previne: “Podem esperar grande oposição e comentários, mas, como vamos manter-nos muito discretas, talvez os adversários se cansem”.

Numa outra carta, Miss Margaret Hennessy diz à Madre Ste Croix:

Um sacerdote disse-me que as religiosas devem disfarçar-se muito bem. As Irmãs de Sta. Doroteia estiveram cá durante anos usando vestuário em cores, agora, penso que já vestem de preto. As Irmãs de S. Domingos usam na rua vestidos pretos, véus pretos, chapéus pretos de senhora. Como vêm em grupo quanto menos o vestuário der nas vistas, melhor”.

De Béziers para o Porto

As três religiosas – Saint Marie Hennessy, Saint Appollonie Fenayrou e Saint Gabriel Moylan – deixaram Béziers de manhã cedo, no dia 28 de setembro de 1871, após uma cerimónia de envio na Casa Mãe. Duas jovens candidatas francesas – Sainte Madeleine e Saint Julie Romieu – faziam, também, parte do grupo.

No relato de arquivo, diz-nos a M. Saint Félix:

“Perante a comunidade reunida, as nossas queridas fundadoras receberam a bênção do fundador.

A superiora recebeu das suas mãos o livro da Regra.

Esta cerimónia foi muito comovente.

A sua memória ficará gravada no coração daquelas que a testemunharam.

O Pe. Gailhac estava bem consciente do que as esperava; nas palavras de envio, disse:

Não há dúvida que ides passar por sofrimentos e provações,

esse é o único meio de fazer o bem.

Mas, se amardes a Deus,

Ele vos defenderá em todas as dificuldades

e vos confiará o Seu Coração”.

Passaram a primeira noite em Bayonne e retomaram a viagem na manhã do dia 29 de setembro, chegando à fronteira espanhola, Irun, às oito horas da manhã. Esperaram, até às duas horas da tarde, pelo comboio seguinte. Ninguém lhes ofereceu um lugar para se sentarem nem sequer um copo de água. Algumas pessoas, ao vê-las na estação, trataram-nas com zombaria e desprezo. O próprio chefe da estação, quando inspecionava as bagagens, mostrou-se rude com elas. Finalmente, chegou o comboio e continuaram viagem até Madrid. Vestidas, ainda, com os hábitos, atraíam insultos cada vez que paravam em alguma estação. Quando deixaram o comboio, em Madrid, foram cercadas por uns duzentos espanhóis que ridicularizaram os seus hábitos. Um empregado do hotel cuidou-lhes das bagagens e ofereceu-lhes ajuda. Antes de partirem de Madrid para Portugal, mudaram para trajes de viúva para serem menos notadas. Mesmo assim, o seu vestuário “burlesco” atraiu as atenções. Foram reconhecidas como religiosas pelos estudantes que iam para a Universidade de Coimbra. O chefe da estação, Senhor de Varennes, livrou-as dos estudantes, acompanhando-as até ao comboio e dando-lhes um compartimento reservado, que só deixariam no Porto. Preveniu, também, os chefes das estações pelas quais as religiosas tinham de passar, pedindo-lhes proteção para elas.

Com um atraso provocado pela chuva torrencial, chegaram ao Porto pelas 22h00 do dia seguinte, onde foram acolhidas pela diretora do Colégio Inglês, Margaret Hennessy. O encontro com a superiora da comunidade – Saint-Marie Hennessy (sua irmã Bridget) – foi particularmente afetuoso.

Por ser já muito tarde foram, imediatamente, para casa – uma casa simples e pobre – e cantaram o Te Deum em ação de graças pela viagem livre de perigos.

(cf. Uma caminhada na fé e no tempo, vol. II)

Quando estas notícias chegaram à Casa Mãe, o Pe. Gailhac escreve-lhes:

“Louvor e graças a Deus que durante a viagem vos guardou como a menina dos olhos

e, ao longo do caminho,

colocou os seus anjos para vos proteger, dirigir e ajudar na vossa missão”.